domingo, 29 de abril de 2007

No início..


Eu.
Eu nasci numa terra de muito mosquito. Esse inconveniente era, porém ultrapassado ( além dos mosquiteiros, da "tifa" e do "flit") pela beleza incomparável da restinga. Pelo facto do meu pai trabalhar no CFB, que tinha um bom hospital, talhado em estilo inglês colonial, para lá se encaminhou a minha mãe. Perto da praia, claro está, por isso fiquei caranguejo.

Mas o Lobito... bem, era o Lobito, os arredores de uma grande cidade - A cidade dos poetas, dos contestatários, dos intransigentes, dos siripipis e dos matrindindes. Era para lá que a vida estava virada. Benguela.
Além do mais era uma terra que tinha um rio com nome de presidente: o Cavaco. Lugar de excelência - das hortas e da passarada. ( foi ali que fui passear com a minha mãe aqui ao lado)











o Cavaco - Um rio manhoso, tal como o epónimo, mas bem aventurado: tem camarão!

O Cabo das três pontas era o lugar onde eu passaria o tempo a mirar enquanto crescia. Era assim que os primeiros navegadores se referiam, quando passavam pelo típico cabo, baptizado mais tarde, por sombreiro. Terá sido um marinheiro, vindo do Pacífico Oceano, que, avistando-o, se lembrou da forma cónica dos chapéus dos patuscos chins. Como não lhe ocorreu o nome verdadeiro, logo lhe chamou de sombreiro. ( esta história é inventada). Mas não se esqueçam! esta cidade nasceu com nome branco, de um tal Filipe que era castelhano, (por cima de um kimbo de nome Benguela, filha de Ombaka,) por isso "sombrero"! Olé!

Mas alguém teve melhor sorte de ter crescido senão nesta cidade? Não,... não há!


Por isso aproveitei. A minha mãe ensinou- me que todas as melhores brincadeiras tinham a ver com três coisas: terra, água e árvore. O resto eram adereços.
Só que tinham um problema: sujavam e isso era muito bom.

Como todos os
minino, brincava como todos os filhos de ferroviários e meninos dos bairros (em Benguela não há muceques) abeirado dos comboios e de tudo o que eles, traziam e levavam: cana e croeira ( mandioca seca).
Aprendi rápido todos os truques para não ser apanhado pelos guarda freios.

Cedo descobri que no mar é que todos tínhamos sido gerados. Aprendi que Kalunga tinha as suas filhas: as kihandas, que chamavam à Praia Morena todos os benguelenses: brancos, pretos e mulatos, cafusos e cabritos.

Na Praia Morena todos aprendemos a nadar, a fazer laços para apanhar andorinhas do mar, a dar bicos nos caranguejos, a apanhar colo-colos e mariquitas nas pontes.

A Praia Morena tinha os seus encantos e desencantos
, do hospital até ao Conde: de manhã para os brancos mulatos e assimilados e de tarde, para os pretos. O resto era de todos.
Era de tarde que eu mais gostava. Não tinha que gramar a escola. Partia com os criados. pescar com linha de nylon e chumbada de porca, ou experimentar os barcos que engendrava, na foz do Coringe, que era um rio ainda mais manhoso do que o Cavaco.

Como eu gostava de barcos! De tarde via chegar as chatas com aquela vela latina enfunada, com as fraldas a roçar na água e espantava-me como navegavam depressa, com a brisa a soprar do mar, carregados de caxuxo e carapau, governadas por valentes marinheiros. Vem-me então esta pergunta: quem os ensinou a navegar? - " foi, foi, o peixinho do mar" dizia a canção. Mas não - foi Kalunga dos mares.

Logo tratei de fazer um barco à vela: Bóias de câmara
de ar, mastro de pau de vassoura, verga de bambu, vela de pano de lençol e estrado de mocibe, para suportar tudo.

E assim, mais o co-piloto ( meu irmão Lelo) passei a descobrir terras e a desbravar esse mar Oceano, sem nunca poder parar até que me desfaça na espuma das ondas.













Até ao Liceu

Inevitávelmente, a escola tinha que surgir. 6 anos. O meu irmão João já lá andava. Escola 30, Estilo Plano Centenário, num longo quintalão ( Benguela era o paraíso dos quintalões) cheio de árvores centenárias, em frente ao prédio do Tantan e da vivenda do Machado, com a traseira virada para a antiga avenida Gago Coutinho. A Escola 30 tinha meninos pobres: muitos negros, mais mulatos e brancos poucos. Escola só para rapazes. Primeiro professor, o professor António segundo e última, a professora Aida. Chorei baba e ranho quando a minha mãe me deixou lá, para fazer a primeira classe.
(O Matrindinde servia para nós como brincadeira:

rebocava as caixas de fósforos e fazia corridas foto do Pinhão)
A turma tinha muitos alunos divididos em dois grupos: 1ª e 4 classe. Depressa aprendi a venerar os intervalos, lugar de grande competição e de fraternidade. Ninguém comia o lanche sem partilhar. O não cumprimento, correspondia a uma " bábula" sem fuga: ficavas sem lanche.
Brincadeiras mil: paus de sorvete, carteiras de fósforos com caricaturas de jogadores jogados da parede. O prego, a bilha e a uéla. Corridas de cisnas (caricas) em circuitos escavados na terra. Canhé. Sóis. Todas as brincadeiras copiadas ou imaginadas. Bom faltava uma: jogos de futebol com bola de meia. Os colegas foram centenas. Na minha memória ficaram: o Olavo, o Reigadinha, o Sardinha ( o preto mais branco de Benguela) os Mafras, os Manitas, o Bonfim, o Wilson Santos ( esse mesmo da Unita), o Jordão ( do futebol) os Caotas ( Rui e Carlos) o Tito Marcolino...
Dois episódios marcaram
a minha memória da escola 30 - Um: à saída com a obrigatória bata branca e sacola feita de ganga, ía num grupo, junto às ruínas do cinema Pires, um dos que vinham atrás grita eu viro-me e apanho com uma pedrada que me rasgou a pele entre o olho e a cana do nariz. Rapidamente fiquei cheio de sangue e logo o meu irmão me enrolou a bata à cabeça e lá fui quase a desmair a pé até ao enfermeiro que ficava junto da Casa Branca. Cosido, lá fiquei à espera que o meu pai me fosse buscar. Morava em frente à congeladora do Borges.
Outro: Também à saída da Escola. 1961. Saímos já com o céu das seis horas carregado de nuvens profundamente azuis escuras. Quando passamos pelo Café Porto, começam as faíscas e os trovões a soar de uma forma aterradora. Começamos a correr e agarramo-nos à volta de uma árvore grossa que
ficava junto à Fazenda Pública, em frente da Tropicália. O polícia sinaleiro tinha já saltado da peanha e gritou-nos para saírmos debaixo da árvore rapidamente. A chuva começou a cair ferozmente e corremos para a Alfaiataria do Sampaio. Atravessámos entretanto a avenida 5 de Outubro já com água até ao lancil passeio. Estivemos por lá até tarde à espera que o nosso pai conseguisse vir buscar-nos. A Avenida era um rio, com água a roçar a porta da alfaiataria.





Uma das minhas moradas durante a infância (1º andar frente direito) em frente ao Portugal de Benguela foto da Yola)
Feita a terceira classe. Segui a tradição familiar: Velha Cló.Vou precisar: Colégio Paula Vicente na avenida 5 de Outubro ao lado da Câmara Municipal e em frente a um jardim monumental. Ali sentei-me pela primeira vez numa carteira com uma menina - a Lassalete - uma cabritinha que me ajudava nas contas. Como eu sofri com a Velha Cló. Dado curioso: já tinha sido professora da minha mãe e do meu irmão mais velho. Quase me matou de tanta reguada, chapada, castigo de joelhos em cima de areia. Sábados à tarde e quantos Domingos de manhã. Tudo isto à conta da Matemática. Os miúdos da velha Benguela conheciam a velha. Quando passavam nunca se esqueciam de gritar: Velha Culóóó! Gaióóóla! ( desses miúdos lembro-me de um: o Pinheiro "Coringa").

Disso resultou que passei na aptidão ao Liceu e Escola Industrial e Comercial. Feito no Cabo Submarino. Continuei a detestar a Matemática e... fui para o Liceu.
Outra onda começava a formar-se...