terça-feira, 25 de março de 2008

Destino ou um pouco mais?

http://www.myspace.com/sambaseneNestas viagens, o imprevisível, o inesperado, parece naqueles longínquos trinta anos uma coisa organizada, predestinada para acontecer. Na verdade não era.
Quem é que poderia esperar que existisse a situação que conto. Mas, se calhar era assim mesmo que as coisas estavam previamente organizadas.
A caminho de Calequisse, numa tabanca que já não me lembra o nome, resolvemos passar o olhar por um conjunto de moranças num quase fim de tarde. Logo, topamos junto a uma paupérrima casa de sibes, palha, forrada com um barro já a cair, sentada, sobre os calcanhares, imóvel, uma velha senhora (parecia, pois na verdade não teria mais de trinta e poucos) com os braços cruzados, com cada mão parecendo segurar uns antebraços esquálidos, segurando um tesouro, o seu. O seu olhar descarregou em nós um grito de “ajudem-me” mas, por outro lado, também de contemplação. De quem já está noutra dimensão da vida. Os olhos grandes quase saltavam de uma face desprovida de massa muscular, que terminava num lenço enrolado na cabeça, à maneira manjako.
Abeiramo-nos largando um “Boa tarde camarada” que obteve um murmúrio quase imperceptível. De repente, ou talvez não, a Ana, eu e a Denise fixamo-nos no regaço.
Todos tivemos dificuldade em descodificar a imagem.
Saía dos panos azuis e brancos do regaço, uma cabecinha do tamanho de uma laranja, uma carinha dominada por uns grandes olhos. Uma criança pois!
A Ana com o seu gesto maternal pediu para pegá-la. Os nossos olhos quase saltavam de lágrimas e de espanto. Nunca tínhamos visto uma criança daquele minúsculo tamanho. Estava viva, tinha uns vinte e cinco centímetros de tamanho.
Perguntamos ao chefe da tabanca o que se passava.
A resposta foi esclarecedora: aquela mulher estava apenas a aguardar que os espíritos a levassem a ela e à criança. Já tinham consultado todos os sábios. Deveria partir. Ninguém lhe daria ajuda, pois esse já era o destino.
Propusemos ao grupo ir sem demoras para o Hospital de Kantchungo no Land Rover da missão arqueológica. O secretário Mendonça e o chefe da tabanca aconselharam a não fazê-lo. Estava já preparado o “tchoro,” . Era essa a tradição. Logo se lhes juntaram os dois senegaleses e contra nós, brancos. Dizia compreensivelmente o nosso colega senegalês: “vocês brancos têm de respeitar as tradições africanas.” Lembro-me de lhe ter respondido: “eu sou tão africano como tu, mas acima disso espero que compreendas que somos humanos. Não vamos discutir sobre isso: esta mulher e esta criança têm o direito de serem tratadas, quer o Irã queira ou não.” Depois de uma rápida negociação e antes que houvesse intervenção dos familiares, metemo-nos do jeep, não
sem que pedíssemos para avisar pelo balafom que deveriam os familiares ir visitá-la ao hospital.
Chegamos a Kantchungo já de noite. No Hospital, estavam à porta três chinesas e um chinês, vestidos de imaculadas batas brancas, uns quedes pretos e umas soquetes brancas. Levamos a mulher e entregamos a criança, que foi todo o tempo ao colo da Ana. Ainda à entrada, foi-nos dito que a mãe teria provavelmente tuberculose e que a criança precisava de incubadora. Perguntaram-nos então num creoulo bem arrevesado: - ” Medicina chinês ô medicina ocidental? A resposta foi pronta: - “Não queríamos saber qual a medicina mas simplesmente que era necessário salvar os dois.”.
Uns quinze dias depois, já no Senegal, a Denise manda uma recado dizendo que os dois tinham sobrevivido, pois visitara-os havia uns poucos dias. A família tinha acampado no hospital.



Irã = espírito grande, entidade que governa os espíritos dos antepassados do clã e os vivos.
Kantchungo = cidade do chão Manjaco.
Sibes = barrotes de tronco de palmeira.
Tabanca = kimbo, aldeia.
Tchoro= choro, luto.

sábado, 15 de março de 2008

Meios de comunicação alternativos


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A caminho de Calequisse. Encontramos um grupo de bajudas que íam à feira vender uns potes, maravilhosamente confeccionados e que nos venderam um,(ainda o temos.)

Na Guiné Bissau, como noutros países, a comunicação entre as comunidades ou entre cada comunidade, é absolutamente imprescindível. Não comunicar é sinal de desprezo pelos seus familiares, falta de humildade e insanidade.
Durante a luta armada pela sua identidade, os guineenses passaram a usar os seus meios tradicionais de comunicação para as operações de guerra e o operador de comunicações, retomou o seu estatuto.
Numa das missões que efectuamos ao serviço do Comissariado de Estado da Cultura, em prospecção arqueológica, fomos acompanhados pelo administrador da região de Cacheu e no caminho de Calequisse, sem telefone portátil ou outro meio electrico de comunicação, era necessário perguntar se tínhamos caminho livre para uma tabanca no mato profundo, perto da costa.
O motorista do Land Rover (senegalês) não queria arriscar atolar o jeep numa "lala" (clareira na floresta normalmente alagada), e no meio da discussão de planos para aqui e para acolá,(como bons africanos, soltos na conversa e parcos na acção) o nosso bom secretário da administração, (não me recordo do nome) fez então uso do seu conhecimento da terra.
Decidiu que deveríamos tentar na tabanca mais próxima, falar com algum sekulo (na terra - Homem Grande) para resolvermos seguir viagem ou não.
Chegados à tabanca, meio em creoulo meio em francês (na região dos manjacos o francês é a língua estrangeira mais comum) lá ficamos a saber, que era preciso saber o estado de uma velha ponte de troncos feita no tempo colonial pela tropa.
Como fazer? o homem grande disse " prabulema Ca tem camarada, nô bai sibi, nã próprio, quinti quinti!" ( não há problema vamos já saber depressa). Fomos encaminhados até à morança do operador de Bombomlom (telégrafo). À porta deparamo-nos com o transmissor: uma secção de tronco de um poilon (sumaúma) escavado profundamente e duas baquetas - nada mais.
Sentou-se e começou a transmissão uns dez minutos com umas batitas fortes espaçadas outras curtas e já está. Passado uma hora, ouvimos ao longe a resposta um som longínquo, a resposta: " a baga-baga comeu os troncos" (salalé).
Azar!
E pronto: sem gasto de energia, bastaria um conjunto de repetidores e aí estão as notícias.
Este recurso foi pouco depois utilizado para outra operação.




Aí está o Bombolom e o seu operador

sábado, 8 de março de 2008

Na Guiné-Bissau, com o Dr. Mário Pinto de Andrade.



(foto in blogue dos meus ex-colegas Fernando Alves e Leston Bandeira, este último esteve comigo na Guiné, como correspondente da Lusa, creio eu)

Neste país, onde fomos cooperantes de 1979 a 1983, tivemos várias aventuras.
Uma que vamos contar começou com o convite feito pela Comissária de Estado Maria da Luz Boal, que a pedido do Comissário de Estado da Cultura, Mário de Andrade (nosso compatriota) nos pedia para acompanharmos uma delegação da Universidade de Dakar em prospecção de concheiros do Neolítico. Essa delegação era composta por um arqueólogo Senegalês e uma historiadora francesa. A razão do convite tinha a ver com o facto de não haver na Guiné (ainda) qualquer arqueólogo e nós por trabalharmos no Gabinete de Estudos e Orientação Pedagógica, apesar de estrangeiros ( embora fossemos considerados da casa).
O Encontro deu-se uma bela manhã em casa do Comissário Mário Pinto de Andrade que ficou encantado de sermos angolanos, enfiado no seu bubu azul, tipo túnica bordado como era costume entre os fulas ou mandingas. Teve a pachorra de ouvir a nossa história de como chegamos à Guiné, depois de declinarmos um convite/promessa para bolseiros na Universidade de Rennes, para um D.E.A..
Lá fomos apresentados por ele à equipa dos quais só me lembro da francesa Catheryne, esqueci-me do nome do arqueólogo e historiador, curiosamente, especialista segundo disse, em canhões e armamento portugueses do século XV e XVI (curioso, um Djolof com esta especialidade). Lembro-me que de Angola só nos perguntou de onde éramos e onde tínhamos estudado (percebi porque se mantinha em silêncio sobre a terra) e tivemos o bom senso de também não falarmos de Angola, embora estivesse a dada altura quase compelido a dizer-lhe que simpatizava com a causa e com as pessoas da Revolta Activa. Falamos de literatura africana, da História de África e da necessidade de avançar com a arqueologia na Guiné, convidando-nos a apresentar um plano à sua lugar-tenente Iva Cabral, filha do seu companheiro de guerra Amílcar, então Directora Cultura.
Depois de uns sumos de calabasseira (a nossa múkua) refrescantes tomados no alpendre de sua casa bem modesta, onde tinha hospedado a equipa senegalesa, fartou-se de contar histórias sobre as makas dos países africanos, das quais retenho uma muito curiosa.

Contou-nos a sua experiência quando foi representar a Guiné-bissau no X Congressso Pan Africano da Cultura, realizado em Lagos. A história foi mais ou menos esta: no aeroporto o chefe do protocolo começou por lhe dizer ao ouvido para se dirigir à casa de banho para guardar a carteira junto às cuecas. Espantado e não querendo ser indelicado, decidiu-se a perguntar se se tratava de algum costume protocolar. A resposta fora simples e bem pragmática: “Senhor Ministro” dizia o zeloso oficial: “Lagos tinha um problema que ainda não tinham conseguido resolver - o roubo”. Incrédulo, contou a rir, insistia então na tentativa de não aceitar o convite, perguntando-lhe que faziam então os seguranças Ibos que tinham sido colocados à disposição. A resposta, segundo disse, tinha sido mais pragmática: é que não podia assegurar que eles se contivessem em não lhe ficar com a carteira e assim, de mãos a abanar, seria muito mais seguro, na melhor das hipóteses, ficar com a carteira intacta ou na pior, poder andar com a cabeça em cima do pescoço. Mário acabou por aceitar então uma bolsa em tecido com uma fita para amarrar à cintura, onde colocou a carteira, debaixo do bubu, como todo o mundo.
Deixamos a casa do Comissário de Estado, fora a última vez que o vimos, apesar de termos várias vezes com entrevista marcadas e sempre adiadas porque sucediam sempre coisas à última da hora. Esclareço que não era porque vida de um ministro da cultura fosse muito preenchida, mas porque Mário de Andrade estava sempre e inesperadamente, a ser convidado por várias entidades para se deslocar para todo o mundo, não para tratar especificamente de matérias do Estado Guineense, mas para tratar de assuntos que lhe eram queridos: a cultura africana, a poesia e a literatura. Viria a ser depois Alto funcionário da Unesco). Lembro-me que enquanto foi comissário nunca vi na Guiné tantas iniciativas culturais: Saraus de balet da China, ciclos de cinema de vários países, exposições de arte...